18/05/2016

ODE AO CALENDÁRIO

Às seis da manhã 
Formigas operárias, embotadas de um silêncio ancestral,
pelos veios da cidade pão dormido, acordam de sonhos intranquilos
Da cama, reviro-me, saiu insone.
Tenho 27 anos! Ecoa amiúde, Tenho 27 anos!
E um não sei quê de raiva e descabimento.

Por isso, não acredito nos muros
E na esperança que o anseio de ser mais me engendra.
Pois, enquanto um outro eu, peregrina,
Entre escolas, farmácias e bares,
Sinto roçar, o meu espírito cão sem dono, o nó da impermanência,
Diminuto cuco do desfazimento, no cabide do descabimento
Eu e o medo da chuva tonitruante, insipiente colecionador de búzios – bois do acaso.

Ao meio dia, 
Entre sombras e sobras, retiro minha máscara de flandres;
Trago no peito uma solidão sem nome;
– na abstração teatral da urbe –
Divido um espaço com outros que comem;
Enceno mais um capítulo, história acidentada;
E pressionado pela idade já ida,
Observo às horas refletidas no pardo tecido da minha tez.

Por isso, golpeiam-me uma ânsia rouca
E o coice cintilante das sirenes que se atrasam, que se arrastam na noite atenta
Pois só subtraindo encontramos alguma alegria;
Só colonizando o outro em nós o amor se aviva
- Marionetes dialéticas de um alumbramento de opostos –
Enquanto nós por aqui, no desmantelo da tarde, ruminamos os gosto do gasto, do farelo e do pasto.  

À noite,
Em frente a morada que me ampara o sono, 
A memória, essa nossa lepra, sussurra entre ossos,
Sinto pesar sobre meus ombros um plúmbeo número do calendário:
22, hoje são 22, não faz muito, fiz 27.
Restam-me alguns dentes,
Uma boca amarga,
Um aranhão na testa,
Uma velha casca de ferida...
E ao espelho, vejo como dói – fico mudo –
O ávido efeito
De uma fome louca de tudo.

(RAMONND, Maurício. Prosa Poética Impura, 2012)