23/08/2012

PÉ DE LARANJA LIMA





















Se aquele menino
Do pé de laranja lima
Soubesse que coleciono temores,
Que vivo desassossegado,
Que minto, desenho falsos sois em um lívido céu;
Que meço palavras, tropeço em vírgulas
E que trago no peito a lembrança sem cor
Dos joelhos feridos;
Mover-se-ia em minha direção
Com a ternura de quem pouco viveu, mas muito sabe

Se aquele menino
Enigmático do pé de laranja lima
Tivesse olhos que pudessem ver
Além dessa casca tênue que me envolve,
Estenderia seus braços sobre meus galhos
Feito vento vadio.
E no misticismo mais profundo,
De suas diminutas crenças,
Entregue a ilusão pueril
Do amor às pequenas coisas,
Sob as fronteiras do tempo,
Olharia para mim admirado,
Homem feito
Brinquedo quebrado.

[MAURÍCIO RAMONND. Pequenas Verdades Distraídas. 2011. p.30].

09/08/2012

CIRANDA II

Ciranda do coração andante,
Cirandemos pelo verso no universo do instante.
Ciranda de pedra, ciranda do mar
Na beira da praia, vamos cirandar!

Ciranda do coração errante,
Cirandemos vagos no mundo comerciante
Ciranda da rua, ciranda da lua
Na noite crua, vamos cirandar!

Ciranda do coração desimportante,
Cirandemos lívidos na cidade do torto militante.
Ciranda do degredo, ciranda do medo,
Na ventura das horas, vamos cirandar!

Ciranda do coração distante,
Cirandemos distraídos sobre a lida cortante.
Ciranda dos galos, ciranda dos calos
Na periferia do ser, vamos cirandar!

Ciranda do coração relutante,
Cirandemos com vassoura e desinfetante.
Ciranda dos vincos, ciranda dos vícios
Na confusão dos amores, vamos cirandar!

Ciranda do coração hesitante,
Cirandemos, volta e meia, à miséria gritante
Ciranda do prédio, ciranda do tédio
Na vida sem cores, vamos cirandar!

[RAMONND, Maurício. Projeto: "Toda Poesia Será Perdoada"]

06/08/2012

OBRA [POSTERIDADE]

Apresento-vos a minha obra:
Uma biografia de quefazeres, ais e fedores vesperais;
Mentira mil vezes mal dita, em fonemas intestinais,
De quem o agouro apenas fita
Sentado no terreiro comendo um punhado de farinha seca e tripa
Folheando um meu livro de poucas frases catacréticas,
Entre cabos eleitorais e de guarda-chuva;
Vices e vícios; sobrecus eleitorais – desventuras patéticas!
Descritas sem pudores,
[vida de bucólicos horrores,
Como um cão a vagar sem dono,
Copo de meio veneno que tomo
Já me rendeu do livro mais um tomo
Que por sua insignificância
Nem posso dizê-lo em linhas tortas
Pois o acaso que comigo pouco se importa
O elegeu como um mal escorador de portas.

(RAMONND, Maurício. 08-07-12)

SERPENTÁRIO

Dois imperfeitos sóis
Fugiram de casa, desgarrados, pintaram no céu dos andarilhos
A constelação do décimo terceiro signo
Sob o véu plúmbeo da madrugada
Notícias já esquecidas velaram-lhe os corpos
E na concupiscência da noite
Eles se encontraram, defeituosos e sem aparente acoplamento.
Procuraram-se nos versos e nos anversos;
Perceberam-se esparsos reflexos;
Equilibrados sob as marquises das horas,
Os dois, trôpegos amantes, conectaram-se ao som da mais bela sirene policial.
E ignorando os estigmas temporais,
Amaram-se!
Quereres-pensares-beijares em sonhação descabida,
Abençoados por um céu que brilha
Até para o cachorro mais vira-lata.

(RAMONND, Maurício. 08-07-12)





"Se amor a tudo perdoa,
Me perdoe por não lhe perdoar".

(RAMONND, Maurício. 13-07-12)

BARBA



Palavra seca quase ruído
Fere de leve a estima,
Fez a revolução cubana,
E sua falta deixa sem graça
O imperador da China.

Como respeitar a seriedade
Daquele que em fremiu
Vaidade corta-lhe
A beleza perene?

Oh barba!
Que emolduraste
As mentiras que minha boca alfanje expeliu.
E ainda conserva em mim ideais, fulgor e mistério.
Tiro-lhe agora com Bic
Na ânsia de não ser mais levado a sério.

(RAMONND, Maurício. Pequenas Verdades Distraídas. 2009)

SAMBA EM SOL MENOR

Confidências em desatino,
Descompassado desafino,
Atravessado na garganta em Fá,
[pequena mestiça.
Assim, no repente, no coco, na cocada da baiana,
Ameno batuque.
Coração que sente: duvidoso, aporrinhado...
No bumbo acovardado,
Mestre-sala chão batido,
[Rodamoinhos do querer.
Beijo afobado, labirinto!
Apanhei-te no repique da espingarda
Tenebroso samba de amor.

(RAMONND, Maurício. 15-07-12)

ESFINGE

Do disfarce
A transfiguração.
Bordados e paetês escondiam...
Mas ao cair da máscara do mascarado
Ninguém mais o encara
Na miscelânea dos segredos, de lábios e medos, toques e retoques,
Em interno degredo, ouve-se ao longe o que um louco cantara:
A alegórica fantasia humana não cabe no que pode ser racionalizado;
Nem na pintura de Dali com qual você sonhara,
Pois mesmo desnudado
A miragem da Esfinge de Tebas declara:
Tudo está na tara!

(RAMONND, Maurício. 15-07-12)

CIRANDA I

Cirandemos!
Dancemos pela Via Láctea da varanda
Observados por um balão furta-cor.
Fora-do-lugar, no lirismo dos morros
Acompanhados pelas mulheres de Itamaracá
Vivamos as esperas, esferas, escoras...
Na marcação do zabumba, do sentir da mais pura encantação.
Cirandeiros, pisemos forte com o pé esquerdo na constelação do Pavão.
Porque dos nossos olhos eriçados,
Amiudados pedaços de lume e de cinzas lunares, ascenderão.
Batizados pela mesma Jaci, a lua, que excitou os lusos-navegantes;
Iluminou ungindo em tons prateados a sés, corpo másculo de Paranoá.
E assistiu ao longe as travessuras do Deus menino.
Pois assim cingidos
Deslembraremos e desmembraremos toda matéria.

(RAMONND, Maurício. 17-07-12)

EU MENINO II

Aquele menino,
Felino vadio,
Subia em telhados;
Desafiava mãe-d’agua no banho de açude;
Sonhava em ser Héracles,
Contra Hidras e Ciclopes
Bradava, com uma espada de madeira, hinos de guerra.

Aquele menino,
Da foto,
Amarelo avivado, pardo pardal
Ouvia os rumores dos insetos,
Desenhava na brisa indistintas paragens,
Voava no sono de quem cresce,
Brincava com búzios bonecos do acaso.

Aquele menino,
Da rua,
Equilibrista das guias, alpinista de estantes,
Danado, frenético filho de Marte.
De olhar assustado, corria indômito,
Cabeça de vento, de poucos medos
E muitos sonhos.

(RAMONND, Maurício. 19-07-12)

A MESMA DOSE

Em cada bar uma (des)pedida.
Em cada copo uma vida.
Em cada dose uma ferida que teima em sangrar.

É! É só isso! Escrever-beber por em cada palavra
um pouco pouco do que somos.
Mas, afinal, o que será de nós que sonhamos?

(RAMONND, Maurício. Prosa Poética Impura, 2012)

ROTINA

Às seis da manhã
Formigas operárias perambulam pelos vãos da cidade adormecida,
Da cama reviro-me, saiu insone.
Tenho 27 anos! Ecoa amiúde, Tenho 27 anos!
E um não sei quê de raiva e descabimento.
Por isso, não acredito nos muros
E na esperança que o anseio de ser mais me engendra.
Pois enquanto outros caminham
– Entre escolas, farmácias e bares –
Sinto um vazio abissal a roçar meu espírito de salário e pão;

Quantos lugares a conhecer?
Quantas comidas? Quantas pessoas? Quantas mentiras a contar?
Eu e minha permanência, insignificante menino do campo.
Quantos olhares a fitar? Quantos (amigos) inimigos a fazer?
Eu e o medo da chuva tonitruante, insipiente contador de estrelas.

Ao meio dia,
Vago andante, retiro minha máscara de flandres;
Trago no peito uma solidão sem nome;
– Na abstração teatral da urbe –
Divido um espaço entre outros que comem;
Enceno mais um capítulo da minha farsa existencial;
E entre os edifícios que compõem o meu horizonte cinza.
Observo às horas refletidas na minha tez,
Pressionado pela idade já ida,
Com a sensação de ter
Pela frente um resquício de vida.

À noite,
Em pé, enfrente a morada que me ampara o sono,
Aflito pássaro silente movido pelos cadarços invisíveis do tempo,
Sinto pesar sobre meus ombros um plúmbeo número do calendário:
22, hoje são 22, não faz muito, fiz 27.
Restam-me alguns dentes,
Uma boca amarga,
Um aranhão na testa,
Uma velha casca de ferida...
E ao espelho, vejo como dói – fico mudo –
O ávido efeito
De uma fome louca de tudo.

(RAMONND, Maurício. Prosa Poética Impura, 2012)

É

É
É fome do inominável,
É querer que não cabe, descabido.
É vontade de ser, não ser, vir-a-ser...
É desejo de mais, cais, ais...
É palavra sem destino;
É fruto absurdo, prisão presente, pacato passado;
É verbo intransitivo corroendo o estômago;
É anseio de que um apagador apague a dor;
É um que atira a dor num alvo que é o outro;
É felicidade expatriada, futuro gerúndio martelando;
É ir para além do umbigo, é o que cobiço e não digo
É pessoa sem Pessoa, é Drummond sem pedra, é símio que medra;
É país sem Bandeira, é do teto que abriga o sono dos mendigos, a goteira;
É poesia desritmada, grasnada...
É, é no dia sem fim, que eu me vejo assim, alienígena de mim.

(RAMONND, Maurício. 22-07-12)

ENCONTRO

Quando do primeiro encontro,
A noite coloria nossos espíritos de álcool;
As mulheres mentiam para o tempo,
Enquanto mastigavam as horas.
E eu lembrava desterrado do singelo bordel bordado
Que ferroava minha pele.

Quando do primeiro encontro,
Compulsava em mim a decepção em ser isso, de não ser mais do que isso.
Mas do meu escafandro fitava o relógio, cujos números martelavam a minha alma de simplório operário.
Não podia demorar! O dia e seus galos artificiais tão logo me despertariam
Para ser mais um Sísifo.

Quando do primeiro encontro,
Um deus-rio conduziu meu espírito para o imponderável, o outro,
Na indistinção dos passantes, entre altivos ébrios,
Olhar soturno, corpo declinado, signo confuso...
Na praça onde tudo é:
Mentira e festa; contemplação e compulsão,
O silêncio adormecido acenou ao longe
E, entreolhares, senti um calafrio na juntura dos ossos.

(RAMONND, Maurício. 22-07-12)

O GATO

Passareleia sublime
Por telhados alheios,
Altivo dono da rua
E do mundo, o gato.
Exuberante, perspicaz
Trapezista hercúleo,
Mede passos tétricos.
– sete vidas contra morte –
Para, inclina a cabeça coroada
Pela lua e, dentro do silêncio,
Faz olhos de faróis a tremeluzir,
Enquanto de longe a longe,
Eu simplório bicho urbano
Já tentei de tudo em vãos,
Mas nem mio.
Meu Deus!
Como eu queria ser
Aquele animal vadio.

(RAMONND, Maurício. Pequenas Verdades Distraídas. 2009)

PELE

Pele, frágil papel,
Botão sensitivo,
Alma arma de poeta
Que recobre
E aquece nosso sono,
Vago mundo.

Pele, Espelho d'água,
Reflete um estranho vivente.
A mão toca, em toca, desbrava
Segredos, degredo no arrebol,
Ama cama lençol em caracol.

Pele, umbigo do Sonho,
Escama, declama, inflama,
Suplica anestésicos sussurros.
Pele em pêlo pelo êxtase
No pelô do escravo desejo.

Pele, metrópole infantil,
Nas noites de chuva,
Marquise temporal,
Lar de amantes marginais,
A pele que habito
Abriga um louco.

(Maurício Ramonnd. 26-0712)

MARIANA

O mar
e ana
Maré ana
O mar do mundo novo
Ultramar
As águas miro.
MARIADO.
Quando o mar viu ana
Quanta coisa lhe veio Além-mar,
Mas o mar amar não se engana
Pinta em mim uma face Humana
Que tu?! Mar! Sempre hás-de amar
Ah! O Grande Cais donde partimos
[anterior, eterno e divino!
Carta ao Mar, Deixa escrever-te, verde mar antigo,
Quanta vida veio ao mundo contigo?!
Quanto quero e não digo?!
Ver pra’lém do umbigo
Confundir-se, Largo Oceano,
NO MERGUHO DE QUEM AMA
Aglutinando o mar a ana
Mariana.

(RAMONND, Maurício. 2011, p.133)

BLUES BANAL [Para os que esperam]

Na fila dos que esperam
Porvindouras bênçãos,
Na fila dos que esperam,
Estendo a mão e ofereço meus calos
Como prova da minha miséria.
Tende piedade desse mortal
Que ama no impossível,
Dentro da noite banal,
Na íris mendigo invisível,
Uma alegria canina rural;
E que aprendeu a rir renitente,
Divago sorriso faca entredentes.

(x2)
Senhor, perdoe meus desejos vãos,
Perdoai esse que estende a mão,
Pois no delírio do meu canto rouco
O que não me falta é pão.
Misericórdia da minha miséria.

Na fila dos que esperam,
Confundido entre os restos, os rastros
Que compõem o pão embolorado do dia,
Na fila dos que esperam,
Na vertigem das horas, cubro a alma com emplastros;
Preencho o vazio com goles de cachaça,
Porque tudo me é lícito, mas nada vem de graça.
Deus dos humilhados olhai por mim!
E dai-me a graça para apagar essa pinga de praça.

(x2)
Senhor, perdoe meus desejos vãos,
Perdoai esse que estende a mão,
Pois no delírio do meu canto rouco
O que não me falta é pão.
Misericórdia da minha miséria.

Na fila dos que esperam,
Transito movendo velha carcaça,
Na fila dos que esperam,
Sofro, trabalhando ou não, vestindo couraça,
Apego-me ao efêmero, como, consumo
Sobrevivo em rótulos de margarina,
Coração aquartelado pulsa,
Repulsa em desassossego, corpo desejante de toxina.
Deus dos humilhados olhai por mim!

(x2)
Senhor, perdoe meus desejos vãos,
Perdoai esse que estende a mão,
Pois no delírio do meu canto rouco
O que não me falta é pão.
Misericórdia da minha miséria.

Na fila dos que esperam,
Entre tantos que disputam o osso
Um vencerá e essa será minha glória.
Na fila dos que esperam,
Contadores de piadas sujas vestem toga
E na ausência de tudo, imposto composto
Roubarão o troco da minha droga.
Deus dos humilhados olhai por mim!

(x2)
Senhor, perdoe meus desejos vãos,
Perdoai esse que estende a mão,
Pois no delírio do meu canto rouco
O que não me falta é pão.
Misericórdia da minha miséria.

Deus dos humilhados olhai por mim!

[RAMONND, Maurício Pequenas Verdades Distraídas. p. 90, 2012]

EU MENINO III

Oblíquo colibri menino,
Olhos intensos, enegrecidos, avaros,
Duros e hipnóticos pedintes.
Filho matutino do tempo,
Deitava-se sobre a relva,
Enquanto, assentava-lhe a alma
Uma réstia de sol sustenido,
Um outro passarinho cantava,
Sobre um seu ramo de arbusto;
Saltava inseto galhos de mangueira
Como pulasse corda sobre a estrela de Centauro.

Oblíquo colibri menino,
Cabelos cingidos tingidos, graúno curumim,
Camisa alva alvoroço alvorecer,
Havia em seu semblante um enigma,
Menino pássaro que o canto enleia,
Espargia aventuras pelo quintal seu mundo,
Enfiando-se entre folhas,
Na companhia de obtusos sapos;
Escondia-se dos outros pueris soldados;
Confundia-se entre plantas agrestes;
E em danação, papel deixado ao acaso,
Entregava-se a libertinagem brincante dos ventos.

Oblíquo colibri menino,
Boca reticente mameluca declinava mistérios;
Não media palavras, palavroso, palavrões palavrava.
Cabeça oca,
Incomodava a quietude do espírito interiorano;
Jogava pedras na casa do louco da rua,
Insurgente inocência;
Ícaro passante,
Voava asa de cera rente à estrela perdida da felicidade.
Efêmero,
Quase não sofria com infortúnios,
Era filho matutino do tempo e no sono todo pesar se extinguia.
E a vida?! Era só aquilo.
A noite passava uma borracha no dia,
E na aurora, ao lado de românticos galos, renascia.

(Maurício Ramonnd. 2012)

PONTEIROS

O tempo,
Versátil brincalhão,
Fitando-nos, provocadoramente.
Rio a marulhar veloz, caudaloso...
Estendendo sua mão plúmbea
Sobre nosso frágil existir.

O tempo,
Ponteiros partindo parteiros das horas
Grafando amargas linhas
Em nossa testa já cansada de ser
Isso que o somos,
Maltrapilhos viventes.

O Tempo,
Malévolo marceneiro macilento,
Errando a mira, martelando sempre um mesmo dedo
E socando nosso peito insipiente
De esperas e escoras, saltos e sobressaltos
De amos e amores, dúvidas e dívidas.

O Tempo,
É, é esse o nosso limiar,
Agricultor ancestral
Revolvendo o nosso solo rupestre
E lavorando a nossa casca tênue de simplórios
Comedores de produtos perecíveis.

(Maurício Ramonnd. 03-08-12)

PARAFRASEIO DE MIM.

Vi a vagar apressado, um pobre diabo,
Acenando para mal conhecidos;
Caminhando por ruas, deserto dromedário.
Vi sem tino,
Atravessando o sinal, pedindo licença;
Comprando açúcar, esperando enfileirado,
Entre os produtos de limpeza e de higiene íntima;
Grasnando quanto ao aumento dos preços;
Falando dos males da vida, assumindo a culpa...
Vi sem asas,
Furtando a atenção dos marginais
Indefeso, rubro menino...
Com a cabeça inundada de sonhos.
Vi a vagar apressado, um pobre diabo
E aquele pobre diabo meu Deus!
Era eu.

(RAMONND, Maurício. 12-07-12)

PHARMACON [Dependência]

O amor,
Essa droga
Que sinto absinto,
Invade meus poros
E inspirou remotos poetas
Que por amor,
Se o amor fosse tudo,
Teriam sido felizes.

O amor,
Esse chá de espera,
Bicho que roça indômito o que somos,
Revirando lençóis, corando bochechas,
Queimando o feijão,
Fazendo-nos rir para ignóbeis passantes
Enquanto a chuva infantil
Revela o que em nós estava escondido.

O amor,
Esse enigma,
Entrega cega do que não temos,
Que nos devora,
Que mal chega e já está indo embora,
Embora eu o quisesse aqui
Ensinando-me a amar
No outro o que eu não sou.

O amor,
Esse enigma, esse chá, essa espera, essa droga.
Que mantêm vivo meu lívido pulsar.

(Maurício Ramonnd. 03-07-12)

PRIMEIRAS LIÇÕES

Ivo viu a Uva.
Ivo viu a Uva.
E sentiu borboletas voando
Em seu estômago abandonado,
Era seu primeiro ano de escola.
Pequeno pálido inculto,
Ivo viu a uva,
Mas nada entendeu,
Estavam ali, os dois,
Ivo e a Uva.
Ele voltava para casa,
E ela se insinuava, descaradamente,
Depois de uma feira livre
Entre restos de frutas e legumes
Que caíram no chão e por lá ficaram.
Era apenas uma uva,
Todavia, aquele acontecimento feriu
As retinas incipientes
E inculcou a mente
Daquele acanhado vivente.
Ivo viu a Uva,
Avessou os bolsos
E sentiu uma fome ancestral.

(Maurício Ramonnd. 05-08-12)

MISANTROPO

O PRINCÍPIO DA NEGAÇÃO

Eu não
Escrevo,
Peço socorro,
Imploro por piedade
A está cego que sou,
Que soa, que vê,
Mas não acredita.

Eu não
Escrevo,
Eu invejo os loucos,
E não sou digno
De que entreis em minha morada,
Porque nela não há cachorro feliz,
Nem portão.
E o que me abriga
É esse teto concreto armado
Que se estende sobre um rio banal
Onde sou margem, marginal.

Eu não
Escrevo,
Eu ando como quem perdido na vida
Procura em braços alheios
Um endereço, um adereço;
Índio desaldeiado que sou
Grito pelas ruas,
Um outro que xinga,
Conferindo nos bolsos
A procura do troco da pinga.

Eu não
Escrevo,
Suplico um pedaço de pão,
Risco as paredes da
Cidade em festa,
Abro bem meu
Meu olho redondo
E cometo sim!
Um crime
Hediondo.

Eu não escrevo,
Eu minto,
Entre frases e fraudes,
SS e cês-cedilhas,
Sem coesão coração,
Sou bicho extinto.
Eu não
Escrevo,
Eu minto.

(Maurício Ramonnd. 05-08-12)